quinta-feira, 16 de abril de 2009

Messias, de Handel, e a Clave de Dó

Fiquei devendo minhas Backstage Notes no post sobre Handel, então aqui coloco uma memória minha envolvendo o compositor.

Uma das primeiras peças que estudei nas aulas de regência orquestral foi justamente a abertura do Messias. Aprendi muito sobre regência enquanto estudava esta peça. O professor da minha turma, o maestro Abel Rocha, nos ensinou a estudar várias nuances da peça para que tivéssemos o maior domínio possível da partitura antes de começarmos a regê-la. Foi um estudo muito esclarecedor e, confesso, absolutamente torturante. Depois de realizar a análise harmônica, indicar as progressões e modulações, analisar os temas, anotar articulações, indicar entradas, respirações, mudanças de agógica [palavra que entrei na faculdade sem saber o que significava... hehehe] e tudo mais, tínhamos que contar ao professor qual era a 'história' da música, narrando todos os acontecimentos, harmônicos, temáticos ou técnicos, em forma de texto. Só então íamos para a frente da classe começar a reger a peça. Ao invés de instrumentos, eram os próprios alunos que deveriam solfejar as vozes, se dividindo em violinos 1 e 2, violas e baixo, enquanto o Abel tocava o baixo contínuo [aqui, a linha do baixo acrescida dos apoios harmônicos] ao piano. Um caos divertido. Os que ficavam responsáveis pela linha de violas, escrita na clave de Dó, sempre se perdiam no meio da leitura [o andamento da peça após a introdução é bem acelerado] e levavam olhares reprovadores do professor. Levamos muitas broncas sobre a importância que estávamos dando à peça e a forma com a qual estávamos a estudando. Broncas assim não eram incomuns nas aulas com o Abel. Pra mim sempre serviram de incentivo pra melhorar. Na ocasião, ele nos obrigou a estudar individualmente todas as linhas da peça [com quase 100 compassos] ao ponto de decorá-las. Não que precisássemos decorar as linhas, mas foi o que acabou acontecendo. No dia da prova, antes de começarmos a reger, tivemos que primeiro 'narrar' a linha de regência e depois solfejar um trecho em clave de Dó [pra mim foi escolhido um trecho no meio do processo de modulação, pra "facilitar"]. Depois veio o seguinte diálogo:

Abel - agora sabe a peça inteira?
Eu - acho que sim.
Abel - acha?
Eu - tá, eu sei.
Abel - então qual é a primeira nota da viola no compasso 21?

Abaixei a cabeça pra pegar a partitura.

Abel - sem olhar na partitura, claro. Não perguntei se você sabe ler, mas se sabe a música.

Parei pra pensar. Compasso 21 era onde a viola entrava no allegro. Primeira nota da viola? Fácil. "Si natural" - respondi orgulhoso. Mas ao invés de me parabenizar pelo acerto, o professor continuou.

Abel - tá, e no primeiro tempo do 31?

Droga, achei que tinha acabado a tortura. Tilt cerebral total. Fecho os olhos, começo a solfejar mentalmente toda a linha da viola desde o compasso 21 e dez compassos depois chego à resposta. "" - respondo. Novamente, silêncio. "Tá, agora pode começar a reger" - disse o Abel, sem nenhum comentário adicional. O que, vindo dele, já tinha que ser considerado um sinal de aprovação. Fiquei pensando coisas de criança birrenta como "achou que eu ia errar, né?" ou "não conseguiu me pegar" [hehehe]. Depois, orgulhoso, regi a peça, acho que fui bem, tirei uma boa nota e passei de semestre.

Hoje, ao começar a escrever este post, encontrei minha partitura, toda colorida com as anotações de entradas, respirações, temas, mudanças de dinâmicas, apoios harmônicos, modulações. Ouvi a peça [ neste link tem um vídeo do Youtube, não é de uma orquestra de ponta mas a peça está bem executada] acompanhando na partitura e percebi que ainda tenho boa parte da linha de viola decorada, com nomes de nota e tudo mais. Comecei a pensar que eu, como a maioria dos estudantes de música, com exceção dos violistas, tenho mais facilidade com as claves de Sol e de Fá, por ter desde cedo estudado solfejo nestas claves e ter tocado instrumentos cuja escrita é feita nestas claves [estudei contrabaixo - clave de Fá -, violão - clave de Sol - e piano - ambas -, mas nenhum instrumento que utilize bastante a clave de Dó], além de que o estudo de harmonia e composição é feito quase todo sobre estas claves. Por ter menor facilidade em ler na clave de Dó, acabei decorando a linha de viola do Messias, sem precisar me apoiar na leitura. Fiquei agora pensando se o silêncio do Abel foi um gesto de aprovação ao meu estudo, se foi um gesto de auto-aprovação por ter conseguido nos fazer estudar direito ou se foi um modo dele nos mostrar que realmente não estudamos a clave de Dó com o afinco que ela merece, tendo que decorar as linhas para não depender da leitura. Com o Abel tudo podia ter mais que um significado. Se eu perguntar, ele nem vai lembrar. Ou vai me perguntar "O que você acha?". Nunca saberei.

6 comentários:

  1. Rica, esse foi seu melhor post. Você está pegando o jeito, porque blog é isso mesmo: combinar o tema com uma visão (e uma experiência) muito pessoal. Este ficou excelente, até para quem não entende necas de música.

    Abração.

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  2. Você tem e-mail para contato?

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  3. Olá. O meu e-mail é ricardocarva@gmail.com. No que está interessado? Um abraço, Ricardo

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  4. eu tamebém estou tendo aula com o Abel, e adivinhe: Estamos fazendo o Messias e ele já mandou fazer a análise e cantar a linha de viola.
    O melhor de ter entrado nessa página foi o fato de saber como será a prova... nossa, o melhor que a usa experiência com o Abel parece a minha, é quase idêntica

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  5. Ah, cuidado com esta idéia pois o Abel muda o modo como aplica os testes constantemente. O impressionante dele é exatamente a facilidade que ele tem de criar várias linhas de pensamento para o mesmo resultado.

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