Fiquei devendo minhas Backstage Notes no post sobre Handel, então aqui coloco uma memória minha envolvendo o compositor.
Uma das primeiras peças que estudei nas aulas de regência orquestral foi justamente a abertura do Messias. Aprendi muito sobre regência enquanto estudava esta peça. O professor da minha turma, o maestro Abel Rocha, nos ensinou a estudar várias nuances da peça para que tivéssemos o maior domínio possível da partitura antes de começarmos a regê-la. Foi um estudo muito esclarecedor e, confesso, absolutamente torturante. Depois de realizar a análise harmônica, indicar as progressões e modulações, analisar os temas, anotar articulações, indicar entradas, respirações, mudanças de agógica [palavra que entrei na faculdade sem saber o que significava... hehehe] e tudo mais, tínhamos que contar ao professor qual era a 'história' da música, narrando todos os acontecimentos, harmônicos, temáticos ou técnicos, em forma de texto. Só então íamos para a frente da classe começar a reger a peça. Ao invés de instrumentos, eram os próprios alunos que deveriam solfejar as vozes, se dividindo em violinos 1 e 2, violas e baixo, enquanto o Abel tocava o baixo contínuo [aqui, a linha do baixo acrescida dos apoios harmônicos] ao piano. Um caos divertido. Os que ficavam responsáveis pela linha de violas, escrita na clave de Dó, sempre se perdiam no meio da leitura [o andamento da peça após a introdução é bem acelerado] e levavam olhares reprovadores do professor. Levamos muitas broncas sobre a importância que estávamos dando à peça e a forma com a qual estávamos a estudando. Broncas assim não eram incomuns nas aulas com o Abel. Pra mim sempre serviram de incentivo pra melhorar. Na ocasião, ele nos obrigou a estudar individualmente todas as linhas da peça [com quase 100 compassos] ao ponto de decorá-las. Não que precisássemos decorar as linhas, mas foi o que acabou acontecendo. No dia da prova, antes de começarmos a reger, tivemos que primeiro 'narrar' a linha de regência e depois solfejar um trecho em clave de Dó [pra mim foi escolhido um trecho no meio do processo de modulação, pra "facilitar"]. Depois veio o seguinte diálogo:
Abel - agora sabe a peça inteira?
Eu - acho que sim.
Abel - acha?
Eu - tá, eu sei.
Abel - então qual é a primeira nota da viola no compasso 21?
Abaixei a cabeça pra pegar a partitura.
Abel - sem olhar na partitura, claro. Não perguntei se você sabe ler, mas se sabe a música.
Parei pra pensar. Compasso 21 era onde a viola entrava no allegro. Primeira nota da viola? Fácil. "Si natural" - respondi orgulhoso. Mas ao invés de me parabenizar pelo acerto, o professor continuou.
Abel - tá, e no primeiro tempo do 31?
Droga, achei que tinha acabado a tortura. Tilt cerebral total. Fecho os olhos, começo a solfejar mentalmente toda a linha da viola desde o compasso 21 e dez compassos depois chego à resposta. "Ré" - respondo. Novamente, silêncio. "Tá, agora pode começar a reger" - disse o Abel, sem nenhum comentário adicional. O que, vindo dele, já tinha que ser considerado um sinal de aprovação. Fiquei pensando coisas de criança birrenta como "achou que eu ia errar, né?" ou "não conseguiu me pegar" [hehehe]. Depois, orgulhoso, regi a peça, acho que fui bem, tirei uma boa nota e passei de semestre.
Hoje, ao começar a escrever este post, encontrei minha partitura, toda colorida com as anotações de entradas, respirações, temas, mudanças de dinâmicas, apoios harmônicos, modulações. Ouvi a peça [ neste link tem um vídeo do Youtube, não é de uma orquestra de ponta mas a peça está bem executada] acompanhando na partitura e percebi que ainda tenho boa parte da linha de viola decorada, com nomes de nota e tudo mais. Comecei a pensar que eu, como a maioria dos estudantes de música, com exceção dos violistas, tenho mais facilidade com as claves de Sol e de Fá, por ter desde cedo estudado solfejo nestas claves e ter tocado instrumentos cuja escrita é feita nestas claves [estudei contrabaixo - clave de Fá -, violão - clave de Sol - e piano - ambas -, mas nenhum instrumento que utilize bastante a clave de Dó], além de que o estudo de harmonia e composição é feito quase todo sobre estas claves. Por ter menor facilidade em ler na clave de Dó, acabei decorando a linha de viola do Messias, sem precisar me apoiar na leitura. Fiquei agora pensando se o silêncio do Abel foi um gesto de aprovação ao meu estudo, se foi um gesto de auto-aprovação por ter conseguido nos fazer estudar direito ou se foi um modo dele nos mostrar que realmente não estudamos a clave de Dó com o afinco que ela merece, tendo que decorar as linhas para não depender da leitura. Com o Abel tudo podia ter mais que um significado. Se eu perguntar, ele nem vai lembrar. Ou vai me perguntar "O que você acha?". Nunca saberei.
Uma das primeiras peças que estudei nas aulas de regência orquestral foi justamente a abertura do Messias. Aprendi muito sobre regência enquanto estudava esta peça. O professor da minha turma, o maestro Abel Rocha, nos ensinou a estudar várias nuances da peça para que tivéssemos o maior domínio possível da partitura antes de começarmos a regê-la. Foi um estudo muito esclarecedor e, confesso, absolutamente torturante. Depois de realizar a análise harmônica, indicar as progressões e modulações, analisar os temas, anotar articulações, indicar entradas, respirações, mudanças de agógica [palavra que entrei na faculdade sem saber o que significava... hehehe] e tudo mais, tínhamos que contar ao professor qual era a 'história' da música, narrando todos os acontecimentos, harmônicos, temáticos ou técnicos, em forma de texto. Só então íamos para a frente da classe começar a reger a peça. Ao invés de instrumentos, eram os próprios alunos que deveriam solfejar as vozes, se dividindo em violinos 1 e 2, violas e baixo, enquanto o Abel tocava o baixo contínuo [aqui, a linha do baixo acrescida dos apoios harmônicos] ao piano. Um caos divertido. Os que ficavam responsáveis pela linha de violas, escrita na clave de Dó, sempre se perdiam no meio da leitura [o andamento da peça após a introdução é bem acelerado] e levavam olhares reprovadores do professor. Levamos muitas broncas sobre a importância que estávamos dando à peça e a forma com a qual estávamos a estudando. Broncas assim não eram incomuns nas aulas com o Abel. Pra mim sempre serviram de incentivo pra melhorar. Na ocasião, ele nos obrigou a estudar individualmente todas as linhas da peça [com quase 100 compassos] ao ponto de decorá-las. Não que precisássemos decorar as linhas, mas foi o que acabou acontecendo. No dia da prova, antes de começarmos a reger, tivemos que primeiro 'narrar' a linha de regência e depois solfejar um trecho em clave de Dó [pra mim foi escolhido um trecho no meio do processo de modulação, pra "facilitar"]. Depois veio o seguinte diálogo:
Abel - agora sabe a peça inteira?
Eu - acho que sim.
Abel - acha?
Eu - tá, eu sei.
Abel - então qual é a primeira nota da viola no compasso 21?
Abaixei a cabeça pra pegar a partitura.
Abel - sem olhar na partitura, claro. Não perguntei se você sabe ler, mas se sabe a música.
Parei pra pensar. Compasso 21 era onde a viola entrava no allegro. Primeira nota da viola? Fácil. "Si natural" - respondi orgulhoso. Mas ao invés de me parabenizar pelo acerto, o professor continuou.
Abel - tá, e no primeiro tempo do 31?
Droga, achei que tinha acabado a tortura. Tilt cerebral total. Fecho os olhos, começo a solfejar mentalmente toda a linha da viola desde o compasso 21 e dez compassos depois chego à resposta. "Ré" - respondo. Novamente, silêncio. "Tá, agora pode começar a reger" - disse o Abel, sem nenhum comentário adicional. O que, vindo dele, já tinha que ser considerado um sinal de aprovação. Fiquei pensando coisas de criança birrenta como "achou que eu ia errar, né?" ou "não conseguiu me pegar" [hehehe]. Depois, orgulhoso, regi a peça, acho que fui bem, tirei uma boa nota e passei de semestre.
Hoje, ao começar a escrever este post, encontrei minha partitura, toda colorida com as anotações de entradas, respirações, temas, mudanças de dinâmicas, apoios harmônicos, modulações. Ouvi a peça [ neste link tem um vídeo do Youtube, não é de uma orquestra de ponta mas a peça está bem executada] acompanhando na partitura e percebi que ainda tenho boa parte da linha de viola decorada, com nomes de nota e tudo mais. Comecei a pensar que eu, como a maioria dos estudantes de música, com exceção dos violistas, tenho mais facilidade com as claves de Sol e de Fá, por ter desde cedo estudado solfejo nestas claves e ter tocado instrumentos cuja escrita é feita nestas claves [estudei contrabaixo - clave de Fá -, violão - clave de Sol - e piano - ambas -, mas nenhum instrumento que utilize bastante a clave de Dó], além de que o estudo de harmonia e composição é feito quase todo sobre estas claves. Por ter menor facilidade em ler na clave de Dó, acabei decorando a linha de viola do Messias, sem precisar me apoiar na leitura. Fiquei agora pensando se o silêncio do Abel foi um gesto de aprovação ao meu estudo, se foi um gesto de auto-aprovação por ter conseguido nos fazer estudar direito ou se foi um modo dele nos mostrar que realmente não estudamos a clave de Dó com o afinco que ela merece, tendo que decorar as linhas para não depender da leitura. Com o Abel tudo podia ter mais que um significado. Se eu perguntar, ele nem vai lembrar. Ou vai me perguntar "O que você acha?". Nunca saberei.
Rica, esse foi seu melhor post. Você está pegando o jeito, porque blog é isso mesmo: combinar o tema com uma visão (e uma experiência) muito pessoal. Este ficou excelente, até para quem não entende necas de música.
ResponderExcluirAbração.
pachelbel: vc curte?
ResponderExcluirVocê tem e-mail para contato?
ResponderExcluirOlá. O meu e-mail é ricardocarva@gmail.com. No que está interessado? Um abraço, Ricardo
ResponderExcluireu tamebém estou tendo aula com o Abel, e adivinhe: Estamos fazendo o Messias e ele já mandou fazer a análise e cantar a linha de viola.
ResponderExcluirO melhor de ter entrado nessa página foi o fato de saber como será a prova... nossa, o melhor que a usa experiência com o Abel parece a minha, é quase idêntica
Ah, cuidado com esta idéia pois o Abel muda o modo como aplica os testes constantemente. O impressionante dele é exatamente a facilidade que ele tem de criar várias linhas de pensamento para o mesmo resultado.
ResponderExcluir